quarta-feira, 21 de junho de 2017

Relembrando(parte 2)

Como segundo texto a ser relembrado, trago um que gostei bastante de ter escrito. Acho que serve para a reflexão de todos e, neste momento, principalmente uma reflexão minha do valor da vida.

"O Velho e o Rio

O Velho estava cansado. Nos últimos setenta anos tinha sido um peão de estância sem nenhum dia de folga ou férias, um único dia. Nem uma doença o atacava, o Velho não ficava doente, não podia ficar doente. Todas as manhãs encilhava o seu cavalo baio ruano e partia para mais uma campereada. Não sem antes é claro, apartar as vacas de leite. Teve também um tordilho negro e dois tubianos, mas o pingo baio ruano, a... Inesquecível. Nunca se queixou de sua lida na estância, mas naquele dia o Velho cansou. Alguma coisa não o tirou da cama forrada com pelego, algo estava diferente. O Velho estava completando oitenta anos naquele dia, que podia ser mais um dia igual aos tantos que já passou, com chuva, geada, neve, sol ou vento, ás vezes até uma mistura de tudo isso. Mas aquele, não era um dia igual aos outros. Não, não era. O Velho estava cansado.
Lembrou então o velho, sua memória estava intocável, do dia que completara dez anos de idade. Foi levado pelo pai até o povoado da capela de Santa Fé, não mais distante que sete ou oito horas da estância. Ficara maravilhado com todo aquele movimento, fora a missa e visitara bodegas e bolichos. Na ocasião ganhara de presente do pai um lenço colorado, o mesmo lenço que o acompanhara pelo resto da vida. Com dez anos de idade o Velho visitara pela primeira vez a civilização citadina. Fora também sua última, pois nunca mais saiu da estância, afinal, alguém tinha que fazer o serviço. O menino de dez anos de idade cresceu e acabou esquecendo do dia em que passeara com o pai. Mas naquela fatídica data, oitenta anos de idade, o velho lembrou. Mirou o prego fincado atrás da porta do quarto e avistou o mimo que o pai lhe dera. Judiado do tempo e do suor da lida, mas ainda assim intacto, bem como o amor e a admiração que o velho sentira pelo pai. O pai havia lutado ao lado de Bento Gonçalves na revolução farroupilha, a estância e uma junta de bois foram dados pelo próprio em agradecimento pela lealdade, fibra e coragem que o pai tivera ao lado do Presidente. O pai era um orgulho para o filho, não podia desaponta-lo jamais.
No entanto o Velho neste derradeiro dia sentiu algo diferente em si mesmo. Alguma coisa estava faltando. Vivia só, o velho, sem mulher nem filhos, afinal nunca teve tempo de procura-los mesmo, a lida não permitia. Custou a se levantar. Já de pé, olhou-se no espelho, coisa que a muito não fazia. Viu um rosto cansado coberto por uma barba que fazia uns cinqüenta anos que ali figurava. Então, pegou uma navalha velha que encontrara no fundo do armário, queria enxergar o homem que estava por trás daquilo. Saiu pro galpão sem a mesma agilidade dos últimos anos. Encilhou o pingo e montou com uma dificuldade que não existia até o dia anterior. O Velho estava cansado. Pegou o rumo do campo e passou a cavalgar a esmo, sem se preocupar com nada. Queria sentir o minuano batendo no rosto limpo, redobrando o chapéu e tremulando as franjas do pala.
Até que uma coisa fez o Velho parar abruptamente. Apeou do cavalo e ficou mirando aquilo de uma forma tão constante, que perdera a noção do tempo. Na sua frente estava o Rio. A o Rio. Quantas e quantas vezes tomara banho no Rio quando era criança. Ele conhecia aquele Rio, sua nascente, suas curvas, mas há setenta anos não se dava conta da existência daquele príncipe aguado. Bebia da sua água, a dava para os animais, irrigava o milho, o feijão e alguma outra coisa. Atravessava-o a cavalo quando o mesmo baixava, afinal tinha um capão de mato do outro lado. O pai estava lá descansando. Passava pelo Rio quase que diariamente mas sem vê-lo. Naquele dia contudo, foi diferente. Sentado numa pedra à sua margem, ouvindo o som sereno das águas correndo, o Velho se deu conta ali, que o Rio é igual a vida de qualquer um ser humano. Ele corre, encontra obstáculos, faz curvas, mas é também, calmo, ameno e sereno. Se deu conta então, o Velho, que durante setenta anos, viveu apenas metade da sua vida. Enxergou no leito do Rio, que qualquer um tem o direito de aproveitar um pouco da sua existência, que o trabalho engrandece um homem sim, mas que não é tudo. É preciso sonhar, amar, sentir medo e saudade. Só assim podemos ser completos.
O Velho estava cansado. E com fome também. Com fome de viver. Acreditem, nem mesmo os oitenta anos do velho foram capazes de impedi-lo de fazer o que queria nos seus últimos dias de vida. Nunca é tarde para se aprender a viver, mas quanto mais cedo a gente se dá conta, mais nossa alma estará completa.
O Velho e o Rio hoje andam juntos. E não há nada que possa impedi-los de serem felizes.
Únicos, o Velho e o Rio..." (publicado em 13/02/2009)

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