No
livro “Noites Brancas”
de Dostoiévski,
há uma passagem em que a avó de Nastenka,
protagonista da obra, diz que o leite já não era mais o
mesmo e que azedava muito depressa, ao contrário do leite
fervido em outras épocas. O livro é de 1848. Ou seja,
para velhinha da obra, leite bom mesmo só no fim da idade
média. Nesta breve passagem, o livro mostra algo que sempre me
incomodou; o saudosismo exagerado, um fenômeno universal e
atemporal, onde costumamos achar que antigamente tudo era melhor. O
passado ganha o verniz da saudade e se transforma nos tempos
dourados.
Admito
que sou um pouco saudosista. Adoro falar de histórias da
infância, da copa de 1994 e dos tempos em que o leite não
azedava tão cedo. Mas isso não faz minha época
ser melhor. Quando criança, ouvia exaustivamente dos “grandes”
que infância boa mesmo tinha sido a deles onde os brinquedos
tinham de ser feitos com bolas de meia, sabugos de milho e latas de
ervilha. Facilidades como a minha bola de couro sintético,
vídeo-games como o meu super-nintendo e programas de TV como
Jaspion
sequer existiam... Hoje, não raro, vejo a minha geração
de vinte e poucos anos com ar de superioridade dizendo que infância
de verdade era aquela em que se podia brincar de bola (de couro
sintético) e jogar Mário
no velho e bom super-nintendo logo depois de assistir Jaspion
na rede Manchete. E a coisa se
aprofunda; não faz muito, um garoto de uns 12 anos postou no
Face:
“As crianças de hoje nunca saberão o que era acordar
cedo para assistir TV Globinho”.
O
saudosismo é bom, eu mesmo sou um saudosista, mas seu exagero
acarreta em amargura. A criança que escuta de um adulto que
sua infância não é infância de verdade,
crescerá com uma leve recalque que um dia será
transmitido ao primeiro piá
que passar. E o ciclo se perpetua.
Imagino
o mundo daqui a 20 anos, onde os saudosistas dirão que
infância boa mesmo era aquela de 2014, em que se jogava FIFA no
Playstation 4 como uma criança normal, e não com robôs
humanoides em estádios holográficos sem graça.
Por Rodrigo de Bem Nunes
2 comentários:
Hehehe... Muito bom!!
Meu caro Rodrigo, concordo em partes contigo. O saudosismo exagerado, arraigado e cego realmente impede que enxerguemos o que há de bom agora. Em contrapartida, saudosista que sou, atrevo-me a tecer a tese de que o saudosismo perpetua o que é bom! Afinal, se relembramos o que nos fazia bem, naturalmente estamos mantendo certas tradições e levando adiante o legado de nossa infância. O problema - e aí fecho contigo na parte do recalque - é quando a pessoa fica relembrando as coisas boas e ruins dos tempos de outrora. Aí é pra azedar qualquer leite mesmo...
Abraço!
PS: Venho seguindo tua contribuição para o blog do Bruno e preciso dizer que foi uma iniciativa elogiável do meu primo. Parabéns aos envolvidos!
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